Foi no início da década de 90 que eu e outro colega
fomos encarregados de fazer a revisão do boletim mensal da programação da
Antena-2 da RDP.
Só os revisores das firmas editoras e afins poderão
compreender quanto exaustivo é este trabalho, tornado, no nosso caso, ainda
mais difícil devido à quantidade de nomes estrangeiros, como compositores,
intérpretes, etc.
Mas, tanto eu como ele, desde novos habituados a lidar
com nomes como Stanislaw Skrowaczewski devido aos discos que possuíamos, e à
experiência adquirida após muitos anos na Emissora Nacional/RDP, esse não era o
maior problema. Eram as famosas “gralhas” tipográficas que, mesmo após três, ou
mesmo quatro revisões das provas conseguiam sempre escapar. E o curioso é que,
por vezes, descobríamos a falta de uma simples vírgula, enquanto uma falha de
maiores dimensões escapava à nossa argúcia.
E, a propósito: sabem que num exemplar do “Diário de
Notícias” do ano de 1968 houve uma “gralha” que deu brado? Foi “apenas” isto:
num anúncio que publicitava colchões de molas faltou o segundo “c”!
Procurem na Internet
e encontrarão alguns deliciosos
comentários sobre aquela bronca. Mas voltemos à música.
Desde garoto apaixonado pela música dita clássica, séria,
erudita ou como lhe queiram chamar (Leonard Bernstein achava preferível
apelidá-la de música exacta pois tem de ser tocada exactamente como o
compositor escreveu), coleccionava todos os catálogos de discos que conseguia
arranjar, e sublinhava as obras que ambicionava ter.
Quando conseguia reunir a quantia de duzentos escudos,
preço médio de um LP naquela época, vinha sempre o embaraço da escolha na lista
que elaborara. É que, arranjar aquela quantia não era fácil mas, com poupanças
como ir e vir a pé do liceu, guardando o dinheiro do autocarro e as
“semanadas”, lá ia conseguindo aumentar a minha discoteca.
E, quando fazia anos, tinha sempre algumas prendas
monetárias, entre as quais não posso esquecer a da minha madrinha de duche
(perdão, de baptismo) que, apesar de “podre” de rica, dava-me cem escudinhos
pelo meu aniversário. Não era mau; chegava para comprar “meio-disco”! Mas foi
assim que a minha colecção foi aumentando até que, juntamente com discos de 78
rpm (dos tempos de criança) atinge os mil exemplares, todos catalogados e,
alguns, autografados pelos intérpretes, o que era fácil de conseguir devido à
minha profissão. É claro que com o advento dos CD, a colecção deixou de
aumentar.
De vez em quando dá-me para folhear aqueles catálogos,
a maioria em francês, alemão e inglês. Como fui sempre avesso às línguas
estrangeiras, fiquei, pelo menos, a saber palavras e frases relacionadas com a
música nessas línguas não esquecendo, como é óbvio, o italiano, a língua
internacional utilizada pela quarta arte. Isto facilitou imenso o trabalho na
rádio.
Mas houve quem se atrevesse, sem ter o menor
conhecimento do assunto, a traduzir alguns desses catálogos, como demonstra a
edição portuguesa da celebérrima editora de discos Deutsche Grammophon Gesellschaft. A impressão foi feita pela
tipografia Barreiro-Lisboa em 27 de Setembro de 1957, sendo a tiragem de 3.000
exemplares.
É claro que na altura engoli todos aquelas asneiras
mas hoje, com a idade e conhecimentos que tenho, acho melhor classificá-los,
contradizendo o título deste blogue, como “A Alegria do Disparate”!
Como seria fastidioso referir todos os erros de
tradução, até porque é rara a página onde eles não acontecem, apontarei apenas,
os mais conspícuos. Aqui vão.
O mais “clássico”, e que ainda hoje perdura, é
“Cavalaria Rusticana”. O saudoso Dr. João de Freitas Branco contava que quando
escrevia sobre aquela ópera de Mascagni, era frequente o revisor corrigir Cavelleria par cavalaria, como se o erro
fosse dele. A isto costuma-se chamar “ser mais papista que o papa”!
Ora, o nome da ópera é Cavalleria Rusticana”, e nada tem a ver com cavalos. Traduzido à
letra, aquele nome significa, aproximadamente, “cavalheirismo rústico”, no
sentido de honra e justiça populares.
O enredo é muito simples: um marido cornudo, depois de
várias peripécias em que a música simples mas sublime tornou numa das óperas
mais populares, mata o amante da sua mulher à facada num duelo sem regras nem
padrinhos. É uma história de faca e alguidar, a que, apenas, falta este último.
Continuando a folhear o catálogo, onde a asneira
referida não poderia deixar de existir, (Goebels, o ministro da propaganda nazi
afirmava que uma mentira muitas vezes repetida, neste caso uma asneira,
transforma-se numa verdade) encontrei mais uma espectacular: a Rapsódia para
contralto, coro masculino e orquestra, Op. 53, de Brahms, traduzida por “velha
rapsódia”!
A ignorância desta tradução é fácil de adivinhar;
abreviando o nome desta obra, os alemães costumam dizer e escrever Alt-Rhapsodie em que alt é uma abreviatura de contralto, a
tessitura mais grave da voz feminina. Por sua vez, alte significa antigo, velho, o que fez com que quem traduziu, que
até podia ser um “barra” em alemão, cometeu aquele erro por se meter em
assuntos que desconhecia e, o que é pior, não se preocupou em investigar.
“Carmina Burana”. Esta cantata de Carl Orff é, ainda
hoje, mencionada com o artigo definido “A” no início, como se este estivesse
implícito. Trata-se de um erro derivado, possivelmente, do facto de as duas
palavras parecerem do género feminino. A realidade, porém, é outra. Carmina é uma palavra latina, do
género neutro, e no plural. Do singular Carmen
vem o termo Carme que significa
canto, poema ou versos líricos.
Quanto a “Burana”, provém de Beuren na Alemanha, onde,
no convento dos Beneditinos, foi encontrada uma compilação de textos referentes
ao modo de vida naquela confraria, feita por um autor anónimo do séc. XIII. Assim,
podemos traduzir por “Cantos Buranos” ou, se quisermos manter a designação
consagrada (que acho preferível) devemos dizer “Os Carmina Burana”.
Desta vez o tradutor do catálogo não se meteu em
aventuras, e manteve o nome como estava no disco. Porém, julgou, certamente,
que os nomes das três partes que constituem a obra eram composições diferentes,
e relegou “Carmina Burana” para um tipo de letra mais pequeno e entre
parêntesis.
Como consequência disto, a distribuição dos
intérpretes ficou de tal modo baralhada, que só quem conhece a obra e está
dentro do mundo discográfico, consegue perceber.
Mas, a mais maravilhosa “tradução” constante neste
catálogo, onde em cada página se vê que foi feita por quem nada percebia do
assunto, é esta: “escravos vendáveis” e, noutra página, “escravos para venda”,
são os títulos de uma ária do “Rigoletto” de Verdi.
Quando, agora, li isto (e fi-lo de certeza naquele
longínquo ano de 1957), detive-me por uns momentos, pensando que não estava a
ver bem. Mas era verdade!
Nessa época, o que conhecia daquela famosa ópera, eram
uns pequenos fragmentos gravados num disco de 78 rotações que ainda hoje
conservo. Mas, não foi preciso muito tempo para, depois de ouvi-la e vê-la
representar dezenas de vezes, poder dizer que a conheço de fio a pavio. Não
como cantor ou maestro, como é óbvio.
Fechei o catálogo e comecei a tentar raciocinar sobre
que diabo de ária seria aquela. No “Rigoletto” não há escravos, nem para alugar
ou para vender, mesmo a prestações. Onde encontrar, então, uma explicação para
semelhante título? Fui buscar o libreto e tentei encontrar algo que pudesse ter
dado origem àquela “tradução”. A única hipótese é o dueto final do segundo acto
si, vendetta, tremenda vendetta! (sim
vingança, tremenda vingança)! E isto
devido à palavra italiana vendetta, ser
um pouco homófona de vendável. Mas, nem esta hipótese é parece-me viável, já
que o catálogo menciona apenas o barítono Hermann Uhde e neste caso, como dueto
que é, falta o nome do soprano. E, mais palavras para quê? Se alguém conseguir
esclarecer-me, fico muito grato.
Mas, não se pense que durante toda a minha vida, tanto
pessoal como profissional ligada à música, só no referido catálogo encontrei
erros de palmatória. Na Emissora Nacional/RDP, também tive de lidar com alguns
que parecem anedotas. Mas, isso ficará para o próximo artigo.
Entretanto, não se esqueçam de procurar os tais
colchões de molas na internet.
Nota: qualquer
comentário escrito segundo o chamado acordo orográfico, será considerado como
tendo erros grosseiros e, como tal, corrigido.