27/08/2014

PEQUENA ANTOLOGIA DE DISPARATES SOBRE MÚSICA (Primeira parte)

Foi no início da década de 90 que eu e outro colega fomos encarregados de fazer a revisão do boletim mensal da programação da Antena-2 da RDP.
Só os revisores das firmas editoras e afins poderão compreender quanto exaustivo é este trabalho, tornado, no nosso caso, ainda mais difícil devido à quantidade de nomes estrangeiros, como compositores, intérpretes, etc.
Mas, tanto eu como ele, desde novos habituados a lidar com nomes como Stanislaw Skrowaczewski devido aos discos que possuíamos, e à experiência adquirida após muitos anos na Emissora Nacional/RDP, esse não era o maior problema. Eram as famosas “gralhas” tipográficas que, mesmo após três, ou mesmo quatro revisões das provas conseguiam sempre escapar. E o curioso é que, por vezes, descobríamos a falta de uma simples vírgula, enquanto uma falha de maiores dimensões escapava à nossa argúcia.
E, a propósito: sabem que num exemplar do “Diário de Notícias” do ano de 1968 houve uma “gralha” que deu brado? Foi “apenas” isto: num anúncio que publicitava colchões de molas faltou o segundo “c”!
Procurem na Internet  e encontrarão alguns deliciosos comentários sobre aquela bronca. Mas voltemos à música.
Desde garoto apaixonado pela música dita clássica, séria, erudita ou como lhe queiram chamar (Leonard Bernstein achava preferível apelidá-la de música exacta pois tem de ser tocada exactamente como o compositor escreveu), coleccionava todos os catálogos de discos que conseguia arranjar, e sublinhava as obras que ambicionava ter.
Quando conseguia reunir a quantia de duzentos escudos, preço médio de um LP naquela época, vinha sempre o embaraço da escolha na lista que elaborara. É que, arranjar aquela quantia não era fácil mas, com poupanças como ir e vir a pé do liceu, guardando o dinheiro do autocarro e as “semanadas”, lá ia conseguindo aumentar a minha discoteca.
E, quando fazia anos, tinha sempre algumas prendas monetárias, entre as quais não posso esquecer a da minha madrinha de duche (perdão, de baptismo) que, apesar de “podre” de rica, dava-me cem escudinhos pelo meu aniversário. Não era mau; chegava para comprar “meio-disco”! Mas foi assim que a minha colecção foi aumentando até que, juntamente com discos de 78 rpm (dos tempos de criança) atinge os mil exemplares, todos catalogados e, alguns, autografados pelos intérpretes, o que era fácil de conseguir devido à minha profissão. É claro que com o advento dos CD, a colecção deixou de aumentar.
De vez em quando dá-me para folhear aqueles catálogos, a maioria em francês, alemão e inglês. Como fui sempre avesso às línguas estrangeiras, fiquei, pelo menos, a saber palavras e frases relacionadas com a música nessas línguas não esquecendo, como é óbvio, o italiano, a língua internacional utilizada pela quarta arte. Isto facilitou imenso o trabalho na rádio.
Mas houve quem se atrevesse, sem ter o menor conhecimento do assunto, a traduzir alguns desses catálogos, como demonstra a edição portuguesa da celebérrima editora de discos Deutsche Grammophon Gesellschaft. A impressão foi feita pela tipografia Barreiro-Lisboa em 27 de Setembro de 1957, sendo a tiragem de 3.000 exemplares.
É claro que na altura engoli todos aquelas asneiras mas hoje, com a idade e conhecimentos que tenho, acho melhor classificá-los, contradizendo o título deste blogue, como “A Alegria do Disparate”!
Como seria fastidioso referir todos os erros de tradução, até porque é rara a página onde eles não acontecem, apontarei apenas, os mais conspícuos. Aqui vão.
O mais “clássico”, e que ainda hoje perdura, é “Cavalaria Rusticana”. O saudoso Dr. João de Freitas Branco contava que quando escrevia sobre aquela ópera de Mascagni, era frequente o revisor corrigir Cavelleria par cavalaria, como se o erro fosse dele. A isto costuma-se chamar “ser mais papista que o papa”!
Ora, o nome da ópera é Cavalleria Rusticana”, e nada tem a ver com cavalos. Traduzido à letra, aquele nome significa, aproximadamente, “cavalheirismo rústico”, no sentido de honra e justiça populares.
O enredo é muito simples: um marido cornudo, depois de várias peripécias em que a música simples mas sublime tornou numa das óperas mais populares, mata o amante da sua mulher à facada num duelo sem regras nem padrinhos. É uma história de faca e alguidar, a que, apenas, falta este último.
Continuando a folhear o catálogo, onde a asneira referida não poderia deixar de existir, (Goebels, o ministro da propaganda nazi afirmava que uma mentira muitas vezes repetida, neste caso uma asneira, transforma-se numa verdade) encontrei mais uma espectacular: a Rapsódia para contralto, coro masculino e orquestra, Op. 53, de Brahms, traduzida por “velha rapsódia”!
A ignorância desta tradução é fácil de adivinhar; abreviando o nome desta obra, os alemães costumam dizer e escrever Alt-Rhapsodie em que alt é uma abreviatura de contralto, a tessitura mais grave da voz feminina. Por sua vez, alte significa antigo, velho, o que fez com que quem traduziu, que até podia ser um “barra” em alemão, cometeu aquele erro por se meter em assuntos que desconhecia e, o que é pior, não se preocupou em investigar.

“Carmina Burana”. Esta cantata de Carl Orff é, ainda hoje, mencionada com o artigo definido “A” no início, como se este estivesse implícito. Trata-se de um erro derivado, possivelmente, do facto de as duas palavras parecerem do género feminino. A realidade, porém, é outra. Carmina é uma palavra latina, do género neutro, e no plural. Do singular Carmen vem o termo Carme que significa canto, poema ou versos líricos.
Quanto a “Burana”, provém de Beuren na Alemanha, onde, no convento dos Beneditinos, foi encontrada uma compilação de textos referentes ao modo de vida naquela confraria, feita por um autor anónimo do séc. XIII. Assim, podemos traduzir por “Cantos Buranos” ou, se quisermos manter a designação consagrada (que acho preferível) devemos dizer “Os Carmina Burana”.
Desta vez o tradutor do catálogo não se meteu em aventuras, e manteve o nome como estava no disco. Porém, julgou, certamente, que os nomes das três partes que constituem a obra eram composições diferentes, e relegou “Carmina Burana” para um tipo de letra mais pequeno e entre parêntesis.
Como consequência disto, a distribuição dos intérpretes ficou de tal modo baralhada, que só quem conhece a obra e está dentro do mundo discográfico, consegue perceber.  
Mas, a mais maravilhosa “tradução” constante neste catálogo, onde em cada página se vê que foi feita por quem nada percebia do assunto, é esta: “escravos vendáveis” e, noutra página, “escravos para venda”, são os títulos de uma ária do “Rigoletto” de Verdi. 
Quando, agora, li isto (e fi-lo de certeza naquele longínquo ano de 1957), detive-me por uns momentos, pensando que não estava a ver bem. Mas era verdade!
Nessa época, o que conhecia daquela famosa ópera, eram uns pequenos fragmentos gravados num disco de 78 rotações que ainda hoje conservo. Mas, não foi preciso muito tempo para, depois de ouvi-la e vê-la representar dezenas de vezes, poder dizer que a conheço de fio a pavio. Não como cantor ou maestro, como é óbvio.
Fechei o catálogo e comecei a tentar raciocinar sobre que diabo de ária seria aquela. No “Rigoletto” não há escravos, nem para alugar ou para vender, mesmo a prestações. Onde encontrar, então, uma explicação para semelhante título? Fui buscar o libreto e tentei encontrar algo que pudesse ter dado origem àquela “tradução”. A única hipótese é o dueto final do segundo acto si, vendetta, tremenda vendetta! (sim
vingança, tremenda vingança)! E isto devido à palavra italiana vendetta, ser um pouco homófona de vendável. Mas, nem esta hipótese é parece-me viável, já que o catálogo menciona apenas o barítono Hermann Uhde e neste caso, como dueto que é, falta o nome do soprano. E, mais palavras para quê? Se alguém conseguir esclarecer-me, fico muito grato.
Mas, não se pense que durante toda a minha vida, tanto pessoal como profissional ligada à música, só no referido catálogo encontrei erros de palmatória. Na Emissora Nacional/RDP, também tive de lidar com alguns que parecem anedotas. Mas, isso ficará para o próximo artigo.
Entretanto, não se esqueçam de procurar os tais colchões de molas na internet.

Nota: qualquer comentário escrito segundo o chamado acordo orográfico, será considerado como tendo erros grosseiros e, como tal, corrigido.



11/08/2014

COMO É POSSÍVEL ENSINAR A ESCREVER PORTUGUÊS?

Começo por pedir desculpa aos meus leitores por, mais uma vez, intercalar um texto antes do que prometi dedicado aos melómanos.
Isto deve-se a um comentário sobre o erro que encabeçava o objectivo deste blogue. Obrigado a quem se esconde sob o anonimato, e chamou a atenção para o erro que, e já lá vão cinco anos, tem perdurado desde o início: o correcto (será?) é vêem e não vêm, grafia agora corrigida como o leitor poderá verificar. Mas, vamos ao âmago da questão.

Foi com alguma nostalgia que reli, saltando aqui e acolá, alguns dos romances de Emílio Salgari que fazem parte da minha biblioteca. Não vou falar de Sandokan ou das dezenas de romances de aventuras com que o desditoso escritor italiano povoou a minha infância e adolescência, tal como Júlio Verne. Entre os que possuo, chamou-me a atenção Os Bohemios (sic), a única história divertida, julgo, que Salgari escreveu.
Como a capa estava em muito mau estado, fiz uma fotocópia com que consegui uma nova encadernação, e comecei a folhear, procurando alguns episódios que tanto me fizeram rir há cerca de sessenta anos.  
Bem disposto, acabei por ler a obra na íntegra, e a minha mulher, que não a conhecia, também a “devorou” em dois ou três dias.
A história foi inspirada no livro “Cenas da Vida Boémia” de Henri Murget. O tema focado, como o nome indica, relata as diabruras que um grupo de artistas faz na Itália da segunda metade do séc. XIX.
Puccini escreveu sob o título La Bohème uma das suas mais belas óperas, e Leoncavallo, o autor de I Paliacci, fez o mesmo; porém, a versão deste compositor caiu quase completamente no esquecimento, embora alguns “intelectuais” afirmem que é melhor do que a de Puccini, quanto mais não seja para divergirem da opinião da maioria dos amantes do canto lírico.
A principal diferença de adaptação da história reside no trágico final das duas óperas: a morte da protagonista Mimi, vítima de tísica. Salgari descreve só cenas divertidas e o livro termina com a dissolução do grupo de boémios, sem alegrias nem tristezas.
Voltando ao livro, e justificando o título deste artigo, vou referir três exemplos da ortografia usada nesta edição, que à falta de datação impressa, julgo ser dos anos trinta do século passado. Aqui estão:
Sótam (sótão); rasão (razão); ha (há). E poderia citar muitos mais exemplos.

Em face disto resolvi folhear alguns dos livros de Júlio Verne que possuo, editados pela Livraria Bertrand igualmente sem data, e que também li na minha meninice.
Eis alguns exemplos da ortografia encontrada:
Elle, anno, sciencia, creado, systematico, phylosophia, etc. etc.
E, nem que de propósito, encontrei um prospecto dentro de um dos livros a informar do lançamento de uma nova edição “reimpressa de acordo com a moderna ortografia”.
Ora eu aprendi a ler e escrever pela “Cartilha Maternal” de João de Deus, com lições dadas em casa por uma professora particular, pois passei todo esse tempo quase sempre doente com todas as doenças virais que atingiam as crianças. A única vacina que havia era apanhar a doença o mais cedo possível; só não tive escarlatina, como a minha irmã mas, em “compensação”, não escapei à difteria, que poucas décadas antes era quase sempre fatal.
Será que hoje não reina a mesma confusão provocada pelos diferentes tipos de ortografia que numa criança, ávida de livros como eu era, tinha de suportar?
Uma vez entrado num colégio para frequentar a terceira classe, tive de aceitar o que se ensinava; mas qualquer falha ortográfica era um erro sublinhado a vermelho pela professora, embora o caos ortográfico que reinava na minha pequena biblioteca fosse o responsável por algumas das “faltas” cometidas.

Hoje penso nas dificuldades que os professores de português tiveram naquela época tal como os de hoje! É que tem havido em Portugal várias corjas de vendedores da Língua Pátria que, com o pretexto de irmos atrás do Brasil e das antigas colónias, a que juntámos agora a Guiné-Conacri numa ânsia idiota de manter um império subjectivo, fazem-me lembrar a teimosia irrealistamente histórica de Salazar do Portugal uno e indivisível do Minho a Timor.
E, paradoxalmente, a ideia parte dessa gente que, se por um lado é uma subserviência, por outro tenta convencer esses países a seguirem o mesmo caminho. Basta ver as reticências que, da parte deles, continuam a surgir.
Sei que as línguas não são estáticas e, por isso, as respectivas ortografias vão sendo alteradas. Mas, estar sempre a mudar por dá cá aquela palha, é apenas incentivar ao erro ortográfico, infelizmente tão corrente no nosso País.
No outro extremo estão os Ingleses que, no futuro, talvez venham a ter uma grafia quase ideográfica se não fizerem uma adaptação fonética. Quando tive, por obrigação, contacto com essa língua, ocorreu-me esta sátira que já publiquei num artigo anterior: “escrevem Sebastião José de Carvalho e Melo e lêem Marquês de Pombal!" 
Ou, como diz um professor de Esperanto, "escrevem hipopótamo e lêem jacaré!" Mas isso é com eles.
As consoantes mudas não se escrevem, dizem os autores do actual “acordo ortográfico”. Mas, quando consultamos essa aberração, verificamos que são só algumas. Por uma questão de lógica, acabe-se com o “h” inicial que já existiu, por exemplo, em “hontem”. A verdade é que, na língua portuguesa, não existem vogais aspiradas. Porquê, então, manter o “h” no início de hoje, haver, hora ou humidade? Porque não imitar o Brasil e escrever “úmido” ou propor-lhes o uso daquela letra na mesma palavra e seus derivados? 
Na linguagem do dia a dia dizemos “pâ” (para) “tô” (estou) e muitas outras modalidades que até variam segundo as regiões. Vamos, então, escrever segundo pronunciamos, conforme vemos na Internet o modo como muitos brasileiros escrevem “português”? 

Como já disse, este fenómeno operado por vendedores da língua nacional parece ser endémico, já que não é de agora. Nas pesquisas que tenho feito sobre este assunto, encontrei um guia turístico sobre Portugal escrito em português, francês e inglês. Tem por título “Ensaio Sobre Costumes e Coisas” e foi escrito por César de Oliveira* e ilustrado por Fernando Bento**. A edição é de 1959.
O realismo e a graça com que são retratados o povo, o clima, os costumes e outras coisas necessárias a interessar o turismo que timidamente se manifestava, são aliciantes e fazem o leitor pensar que, afinal, o nosso povo pouco mudou nos últimos cinquenta anos.
A certa altura pode ler-se isto: “A nossa língua é difícil. Mesmo para nós, acredite. Os acordos do idioma com o Brasil só têm trazido como resultado complicar ainda mais, linguisticamente, as coisas. Cá e lá!”
Comentários para quê? Ainda há duas ou três décadas os advérbios de modo cujo radical tinha acento agudo, passavam a ser indicados com acento grave (só, sòmente). A sua omissão foi mais uma dança interminável, também extensível aos acentos diacríticos, que faz com que muita gente, como eu, cometa erros ortográficos como o que constava na informação sobre os objectivos deste blogue. Mas, serão mesmo erros? Em que ficamos, quando a cambada que está por detrás desta palhaçada “consola” os recalcitrantes dizendo (democraticamente) que quem quiser pode continuar a escrever “à moda antiga”?
Por isto tudo, louvo os verdadeiros professores de português que discordam desta lamentável situação. Sugiro, até, que façam uma greve de zelo deixando passar todos os erros ortográficos dos seus alunos.
Quanto aos ilustres autores deste (des)acordo, como sou bem-educado, mando-os apenas bugiar acompanhados por um tal Aníbal que ratificou esta venda da nossa língua. Mas, como sou livre de pensar, lembrei-me de outros destinos mais adequados que, por uma questão de decoro, abstenho-me de indicar.

E a propósito de vender e bugiar: sabem que as Ilhas Desertas, (Deserta Grande, Ilhéu Chão e Bugio) que fazem parte do arquipélago da Madeira (não confundir com as Selvagens que os Espanhóis cobiçam por causa de aumentarem a extensão das nossas águas territoriais) foram vendidas a um casal inglês em 1894 (juntamente com as Selvagens), só voltando todas ao território pátrio em 1971, por um processo de compra?
Ai Portugal, Portugal! Lembra-te que em 2043 vais comemorar os novecentos anos do reconhecimento como nação independente!

*César de Oliveira: acho muito pouco provável que seja o fundador do M.E.S (Movimento de Esquerda Socialista) que nasceu em 1941 e morreu em 1998. Como referi, a edição é de 1959.

**Fernando Bento (1910-1996): foi um desenhador que colaborou, principalmente, no semanário juvenil “Cavaleiro Andante”.
A título de curiosidade, informo que possuo a colecção completa e encadernada (doze volumes) desse semanário nascido em Janeiro de 1951, tendo sobrevivido onze anos.
Se alguém a quiser comprar, informo que não a vendo por preço nenhum!