Começo por pedir desculpa aos meus leitores por, mais
uma vez, intercalar um texto antes do que prometi dedicado aos melómanos.
Isto deve-se a um comentário sobre o erro que
encabeçava o objectivo deste blogue. Obrigado a quem se esconde sob o
anonimato, e chamou a atenção para o erro que, e já lá vão cinco anos, tem
perdurado desde o início: o correcto (será?) é vêem e não vêm, grafia agora
corrigida como o leitor poderá verificar. Mas, vamos ao âmago da questão.
Foi com alguma nostalgia que reli, saltando aqui e
acolá, alguns dos romances de Emílio Salgari que fazem parte da minha
biblioteca. Não vou falar de Sandokan ou das dezenas de romances de aventuras
com que o desditoso escritor italiano povoou a minha infância e adolescência,
tal como Júlio Verne. Entre os que possuo, chamou-me a atenção Os Bohemios (sic), a única história
divertida, julgo, que Salgari escreveu.
Como a capa estava em muito mau estado, fiz uma
fotocópia com que consegui uma nova encadernação, e comecei a folhear,
procurando alguns episódios que tanto me fizeram rir há cerca de sessenta anos.
Bem disposto, acabei por ler a obra na íntegra, e a
minha mulher, que não a conhecia, também a “devorou” em dois ou três dias.
A história foi inspirada no livro “Cenas da Vida Boémia”
de Henri Murget. O tema focado, como o nome indica, relata as diabruras que um
grupo de artistas faz na Itália da segunda metade do séc. XIX.
Puccini escreveu sob o título La Bohème uma das suas mais belas óperas, e Leoncavallo,
o autor de I Paliacci, fez o mesmo; porém, a versão deste compositor caiu quase completamente no
esquecimento, embora alguns “intelectuais” afirmem que é melhor do que a de
Puccini, quanto mais não seja para divergirem da opinião da maioria dos amantes
do canto lírico.
A principal diferença de adaptação da história reside
no trágico final das duas óperas: a morte da protagonista Mimi, vítima de
tísica. Salgari descreve só cenas divertidas e o livro termina com a dissolução
do grupo de boémios, sem alegrias nem tristezas.
Voltando ao livro, e justificando o título deste
artigo, vou referir três exemplos da ortografia usada nesta edição, que à falta
de datação impressa, julgo ser dos anos trinta do século passado. Aqui estão:
Sótam (sótão); rasão (razão); ha (há). E poderia citar
muitos mais exemplos.
Em face disto resolvi folhear alguns dos livros de
Júlio Verne que possuo, editados pela Livraria Bertrand igualmente sem data, e
que também li na minha meninice.
Eis alguns exemplos da ortografia encontrada:
Elle, anno, sciencia, creado, systematico,
phylosophia, etc. etc.
E, nem que de propósito, encontrei um prospecto dentro
de um dos livros a informar do lançamento de uma nova edição “reimpressa de
acordo com a moderna ortografia”.
Ora eu aprendi a ler e escrever pela “Cartilha
Maternal” de João de Deus, com lições dadas em casa por uma professora
particular, pois passei todo esse tempo quase sempre doente com todas as
doenças virais que atingiam as crianças. A única vacina que havia era apanhar a
doença o mais cedo possível; só não tive escarlatina, como a minha irmã mas, em
“compensação”, não escapei à difteria, que poucas décadas antes era quase
sempre fatal.
Será que hoje não reina a mesma confusão provocada
pelos diferentes tipos de ortografia que numa criança, ávida de livros como eu
era, tinha de suportar?
Uma vez entrado num colégio para frequentar a terceira
classe, tive de aceitar o que se ensinava; mas qualquer falha ortográfica era
um erro sublinhado a vermelho pela professora, embora o caos ortográfico que
reinava na minha pequena biblioteca fosse o responsável por algumas das
“faltas” cometidas.
Hoje penso nas dificuldades que os professores de
português tiveram naquela época tal como os de hoje! É que tem havido em
Portugal várias corjas de vendedores da Língua Pátria que, com o pretexto de irmos
atrás do Brasil e das antigas colónias, a que juntámos agora a Guiné-Conacri
numa ânsia idiota de manter um império subjectivo, fazem-me lembrar a teimosia
irrealistamente histórica de Salazar do Portugal uno e indivisível do Minho a
Timor.
E, paradoxalmente, a ideia parte dessa gente que, se
por um lado é uma subserviência, por outro tenta convencer esses países a
seguirem o mesmo caminho. Basta ver as reticências que, da parte deles,
continuam a surgir.
Sei que as línguas não são estáticas e, por isso, as
respectivas ortografias vão sendo alteradas. Mas, estar sempre a mudar por dá
cá aquela palha, é apenas incentivar ao erro ortográfico, infelizmente tão
corrente no nosso País.
No outro extremo estão os Ingleses que, no futuro,
talvez venham a ter uma grafia quase ideográfica se não fizerem uma adaptação
fonética. Quando tive, por obrigação, contacto com essa língua, ocorreu-me esta
sátira que já publiquei num artigo anterior: “escrevem Sebastião José de
Carvalho e Melo e lêem Marquês de Pombal!"
Ou, como diz um professor de
Esperanto, "escrevem hipopótamo e lêem jacaré!" Mas isso é com eles.
As consoantes mudas não se escrevem, dizem os autores
do actual “acordo ortográfico”. Mas, quando consultamos essa aberração,
verificamos que são só algumas. Por uma questão de lógica, acabe-se com o “h”
inicial que já existiu, por exemplo, em “hontem”. A verdade é que, na língua
portuguesa, não existem vogais aspiradas. Porquê, então, manter o “h” no início
de hoje, haver, hora ou humidade? Porque não imitar o Brasil e escrever “úmido”
ou propor-lhes o uso daquela letra na mesma palavra e seus derivados?
Na linguagem do dia a dia dizemos “pâ” (para) “tô”
(estou) e muitas outras modalidades que até variam segundo as regiões. Vamos,
então, escrever segundo pronunciamos, conforme vemos na Internet o modo como muitos brasileiros escrevem “português”?
Como já disse, este fenómeno operado por vendedores da
língua nacional parece ser endémico, já que não é de agora. Nas pesquisas que
tenho feito sobre este assunto, encontrei um guia turístico sobre Portugal
escrito em português, francês e inglês. Tem por título “Ensaio Sobre Costumes e
Coisas” e foi escrito por César de Oliveira* e ilustrado por Fernando Bento**.
A edição é de 1959.
O realismo e a graça com que são retratados o povo, o
clima, os costumes e outras coisas necessárias a interessar o turismo que
timidamente se manifestava, são aliciantes e fazem o leitor pensar que, afinal,
o nosso povo pouco mudou nos últimos cinquenta anos.
A certa altura pode ler-se isto: “A nossa língua é
difícil. Mesmo para nós, acredite. Os acordos do idioma com o Brasil só têm
trazido como resultado complicar ainda mais, linguisticamente, as coisas. Cá e
lá!”
Comentários para quê? Ainda há duas ou três décadas os
advérbios de modo cujo radical tinha acento agudo, passavam a ser indicados com
acento grave (só, sòmente). A sua omissão foi mais uma dança interminável,
também extensível aos acentos diacríticos, que faz com que muita gente, como
eu, cometa erros ortográficos como o que constava na informação sobre os
objectivos deste blogue. Mas, serão mesmo erros? Em que ficamos, quando a
cambada que está por detrás desta palhaçada “consola” os recalcitrantes dizendo
(democraticamente) que quem quiser pode continuar a escrever “à moda antiga”?
Por isto tudo, louvo os verdadeiros professores de
português que discordam desta lamentável situação. Sugiro, até, que façam uma
greve de zelo deixando passar todos os erros ortográficos dos seus alunos.
Quanto aos ilustres autores deste (des)acordo, como
sou bem-educado, mando-os apenas bugiar acompanhados por um tal Aníbal que
ratificou esta venda da nossa língua. Mas, como sou livre de pensar, lembrei-me
de outros destinos mais adequados que, por uma questão de decoro, abstenho-me
de indicar.
E a propósito de vender e bugiar: sabem que as Ilhas
Desertas, (Deserta Grande, Ilhéu Chão e Bugio) que fazem parte do arquipélago
da Madeira (não confundir com as Selvagens que os Espanhóis cobiçam por causa
de aumentarem a extensão das nossas águas territoriais) foram vendidas a um
casal inglês em 1894 (juntamente com as Selvagens), só voltando todas ao
território pátrio em 1971, por um processo de compra?
Ai Portugal, Portugal! Lembra-te que em 2043 vais
comemorar os novecentos anos do reconhecimento como nação independente!
*César de Oliveira: acho muito pouco provável que seja
o fundador do M.E.S (Movimento de Esquerda Socialista) que nasceu em 1941 e
morreu em 1998. Como referi, a edição é de 1959.
**Fernando Bento (1910-1996): foi um desenhador que
colaborou, principalmente, no semanário juvenil “Cavaleiro Andante”.
A título de curiosidade, informo que possuo a colecção
completa e encadernada (doze volumes) desse semanário nascido em Janeiro de
1951, tendo sobrevivido onze anos.
Se alguém a quiser comprar, informo que não a vendo
por preço nenhum!
Muito interessantes as suas reflexões sobre a ortografia e a sua falta de estabilidade na Língua Portuguesa.
ResponderEliminarPena é que a maior parte das pessoas, mesmo as que se dizem cultas, não tenha hábitos de reflexão sobre a Língua, aquilo a que os ingleses chamam " language awareness". Quanto aos políticos em geral e aos deputados em especial, já nada esperamos deles - são impreparados nesta matéria e em muitas, muitas outras, mas são eles que decidem. É muito triste o que estão a fazer ao Português e resta-me a esperança que este "Acordo" não entre em vigor graças à oposição de algumas ex-colónias, como é o caso da poderosa Angola. Ao que chegamos...