07/10/2020

 Adeus, Quino!


Em Dezembro de 2014 escrevi um artigo intitulado Parabéns, Mafalda”, associando-me às comemorações dos cinquenta anos do nascimento da tua “filha”. Agora, ao saber da tua morte, não podia ficar calado e prestar-te uma homenagem póstuma.

Viste a realidade do mundo como ninguém; nunca tiveste a ilusão de um “mundo melhor”; não quiseste ter filhos para não seres responsável por pôr mais seres humanos neste mundo cruel!

Mas, em compensação deste vida à Mafalda e ao seu irmãozito Gui. Tiveste a genialidade de acrescentar à “contestatária” os seus amigos, cada qual com as suas diferentes personalidades tão bem vincadas.

A Susaninha, apenas preocupada em vir a casar com um homem rico e ter muitos bebés; o Manelito, apostado em ser dono de uma grande cadeia de supermercados; o Filipinho, o eterno depressivo e angustiado com o começo das aulas, e incapaz de se declarar a uma miúda de quem gostava; o Miguelito, o tipo de pessoa prática que, apesar de algumas dúvidas, deixa-as para outro dia; os progenitores da Mafalda, o pai apaixonado por plantas e pelo “dois cavalos” que comprou a prestações, e a mãe, a clássica dona de casa da época, e que continua a existir na maior parte do mundo. Finalmente, a minúscula Liberdade, expedita até mais não, filha de um casal de extrema-esquerda, a tal facção de idealistas que quer endireitar o mundo, mesmo que para isso tenham de cometer as maiores atrocidades, como aconteceu (e ainda acontece) nos países comunistas. São os paradoxos da triste condição humana.

Partiste, Quino, é um modo mais suave de dizer que morreste, porque o ser humano gosta de “dourar” as coisas, mesmo que a situação seja a mesma. Sei que não levaste boas recordações deste mundo onde a vida, para sobreviver, se devora a si mesma! O mundo, aquele que conhecemos e que tão bem caracterizaste nas tuas quase duas mil “tiras”, continuará afogando-se na loucura das novas tecnologias e no aumento exponencial de seres humanos, até que estes se devorem a si próprios ou sejam esmagados pelos seus próprios inventos.

Partiste, repito; e, como escreveu Fernando Pessoa, cuja obra não tenho a menor dúvida que leste, “sem ti correrá tudo sem ti”. Fica a tua monumental obra plena de sabor agridoce porque “a miséria do mundo deve provocar o riso nas nossas almas”. (Li-Tai-Pó, poeta chinês do século VIII dC). E já que estamos em momento de poesia, lembrei-me de transcrever este excerto do poema de Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) intitulado “Tabacaria”.

...

Mas o dono da tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.

Depois de certa altura morrerá a rua em que esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo debaixo de coisas como tabuletas.

Sempre uma coisa defronte da outra.

Sempre uma coisa tão inútil como a outra.

Sempre o impossível tão estúpido como o real.

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície.

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

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