19/11/2014


ÓPERA, NAFTALINA E... PANELEIROS*

(Segunda parte)
 

Curiosamente, seria em Angola que iria assistir alguns dos mais caricatos espectáculos de ópera. Corria o ano de 1966 e encontrava-me em Luanda cumprindo essa aberração chamada “serviço militar obrigatório”, agora modificada num ridículo dia intitulado “de defesa nacional” só para justificar a existência da tropa.
E, já agora, uma coisa que nunca entendi é a razão a existência de ministérios da defesa, comum a quase todos os países (honra seja feita à Costa Rica que não possui forças armadas) quando nenhum outro tem ministério do ataque! (Sou muito ingénuo, não sou?)
Mas voltemos à vaca-fria, neste caso a ópera. 
O episódio que se segue já está mencionado na história da minha ida à guerra que, lentamente, continuo a escrever; já tem perto de duzentas páginas e ainda vou nos primeiros meses em Nova Caipemba. Sabem onde fica? Procurem num mapa.

O meu grande amigo José Manuel Serra Formigal fundara nesse ano a Companhia Portuguesa de Ópera em colaboração com a FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, a que o bom humor lusitano logo classificou de 'Famintos Nacionais Agarrados ao Tacho'). *
Curiosamente, aquela Companhia, sedeada no Teatro da Trindade em Lisboa, e onde, por um preço módico, se podia assistir a um boa récita feita por artistas portugueses, foi extinta a seguir ao 25 de Abril por conotações com o fascismo. Foi um dos curiosos resultados daquela revolução que derrubou uma ditadura para quase instalar outra, acabando por conduzir à ditadura da democracia em que vivemos. Como diz o velho ditado, "a merda é a mesma, as moscas é que mudam".
Nesse mesmo ano da sua fundação, e para tentar, por todos os meios, impingir ao mundo que as colónias eram Portugal, o Governo decidiu enviar a Companhia Portuguesa de Ópera a Luanda. A acompanhá-la foram também o coro do Teatro de S. Carlos e a Orquestra de Ópera da Emissora Nacional.
“Silêncio que está a cantar ópera”, como diz António Silva no papel de burguês rico em “O Pátio das Cantigas”, é o que mais se aproxima da reacção da elite branca (perdão, clara) luandense ao acontecimento; quanto aos pretos (perdão, negros) provavelmente interrogaram-se sobre que diabo de feitiço ou de remédio seria mais aquela “branquice”.
Mas, para mim, foi uma alegria enorme, principalmente por reencontrar o meu velho amigo “Zé” (Serra Formigal) e a mulher, que andara comigo ao colo. Passei bons momentos com eles, além de ter tido a possibilidade de assistir a alguns ensaios.
A representação das três óperas do cartaz, La Bohème, Lucia di Lammermoor e Rigoletto deu-se no Cine-Teatro Restauração, única sala com um mínimo de possibilidades para o evento, mas que não eram suficientes. Porém, devido à arte do desenrasca inata no nosso povo, a coisa funcionou. Apenas a mudança de cenários entre os actos prolongou os intervalos, muito animados pelos sons de carpintaria que se ouviam para lá do pano de boca. Tratava-se de desfazer e refazer os cenários a que o palco improvisado obrigava.
Quanto às récitas, recordo o desencontro vocal entre o soprano Ana Lagoa e o tenor João Rosa, no final do primeiro quadro de La Bohème. Tratou-se de um problema mal resolvido nos ensaios, que não cabe explicar neste contexto. Aqui teria resultado numa grande pateada; lá, foi muito aplaudido.
Já no Rigoletto gozei à farta com os “aaahs!” do público quando, finalmente, chegou a área La donna è mobile.  Pareceu um alívio semelhante ao que fazemos quando, à espera de qualquer coisa, ela chega finalmente. O entusiasmo foi tal, que o maestro Jaime Silva (filho) resolveu bisá-la. Depois, houve que aguardar que aquela 'chatice' acabasse.**

Mas, o melhor de tudo foi observar os trajes da assistência. Muitos homens foram de smoking enquanto as senhoras primavam pela exuberância dos colares, das pulseiras, dos brincos e de vestidos mais ou menos decotados, não tendo esquecido, algumas, casacos de peles!
Assim, além do cheiro da naftalina, juntou-se o do suor inutilmente disfarçado, ou melhor, misturado com perfumes. Para completar, e por razões óbvias, faltava o ingrediente catinga. Tudo misturado, talvez tivesse afugentado qualquer canídeo esfomeado que por lá aparecesse.
Quanto aos comentários da imprensa local sobre tão pomposo acontecimento, destaco o semanário “Notícia” que, sem se meter em apreciações musicais, gozou à farta com as fardamentas surgidas naquela cidade, onde se escorre suor de manhã até à noite. Tenho pena de não ter guardado o respectivo exemplar daquela revista, considerada por irreverente nos meios luandenses da época.
Hoje, e passados tantos anos, permito-me afirmar com alguma nostalgia, que o que aconteceu não foi ópera, mas sim “silêncio que se está a cantar ópera”!

Nota: brevemente será publicada a terceira e última parte, dedicada aos fabricantes de panelas e seus derivados.

*Este trocadilho está mencionado na minha antologia de anedotas políticas do tempo de Salazar.
**A interpretação do Rigoletto demora cerca de duas horas e, aquela que é, talvez, a ária mais conhecida de Verdi, só surge pouco depois do início do terceiro e último acto.


   

07/11/2014

ÓPERA, NAFTALINA E... PANELEIROS*

(Primeira parte)

“A ópera é o espectáculo supremo. Nele se fundem todos os grandes géneros artísticos, realçados pela expressão transcendente da música. Dir-se-ia que o homem se inspirou nos eternos elementos da Natureza, conjugando as vozes do mar, do vento, das aves e da tempestade, para criar tantas páginas imortais do lirismo, de harmonia e do canto!”
Este texto é a introdução de uma longa nota feita pelo empresário Ricardo Covões que, durante muitos anos, esteve à frente dos destinos do Coliseu dos Recreios.
Encontra-se num programa da temporada de ópera de 1947 e é uma resposta a uma nota do Governo de Salazar, que proibia a realização de espectáculos de ópera no Coliseu dos Recreios, nos meses de Abril e Maio, em favor do Teatro Nacional de S. Carlos.
A nota governamental está reproduzida integralmente no programa**, seguida de comentários para a época muito corajosos, que relatam os prejuízos causados e o que foi possível fazer para cumprir, dentro do possível, a presença dos artistas em datas diferentes das estipuladas nos contratos já feitos. O programa que mencionei faz parte da colecção que possuo, onde também constam as temporadas de 1922/23. São herança dos meus avós paternos.
“A ópera é o espectáculo supremo”, escreveu Ricardo Covões”! Não tenho a menor dúvida; e eu especifico os elementos da Natureza por ele citados, como a música, o teatro, a pintura, a poesia e até o bailado nalgumas delas.
Mas, na minha juventude, quando comecei a interessar-me
pela música disparatadamente classificada como “clássica”, os meus conhecimentos sobre a “arte suprema” eram mais que rudimentares. Apenas os nomes das mais conhecidas e a audição de fragmentos em discos de 78 rotações na velha grafonola que existia lá em casa.

Um dia, tinha eu catorze anos e já era uma apaixonado pela  música “clássica”, deu-se o caso de jantar na casa de uns tios muito ricos. E seria nessa mesma noite que iria, pela primeira vez, assistir à representação de uma ópera. Mas, antes de contar porque tal aconteceu, é preciso relatar o ambiente que na época, rodeava a ópera.
A respectiva temporada, realizava-se no Teatro de S. Carlos e no Coliseu dos Recreios. Ao primeiro ia a elite lisboeta que tinha a obrigação social assistir a todos os espectáculos da temporada porque era ser “bem”, como se dizia na época, gostar de ópera.
Até Salazar, aquando da visita da Isabel nº 2 (mais conhecida por Sua Majestade a Rainha Isabel 2ª de Inglaterra) a Portugal, teve de acompanhá-la a uma récita. Se era rainha tinha de gostar de ópera e Salazar, como anfitrião, teve que cumprir o protocolo imposto para a visita de tão importante personagem.
Para os outros, onde se encontrava a maioria dos verdadeiros amantes de ópera, estava destinado o Coliseu. Os bilhetes eram muito mais baratos e, apesar da péssima acústica que tinha, a sala enchia-se de um público entusiasmado.

Depois deste esclarecimento, vou voltar à minha história.
Nessa noite os meus tios iam ao S. Carlos onde, todos os anos, mandavam o motorista comprar a assinatura. A ideia parecia não vir do meu tio, engenheiro civil, pessoa muito modesta, que confessava não apreciar muito aquele tipo de espectáculo.
Mas, sob a pressão da mulher e do filho, lá cumpria o que a alta sociedade determinava. (Recordo uma vez em que me confessou, quase a medo, que só não ia às óperas de Wagner porque o tempo que demoravam fazia-lhe doer o rabo).
O jantar estava a acabar quando o meu primo teve a feliz  ideia de propor que eu fosse também, sugestão que aceitei, entusiasmado. É claro que, naquele tempo, mesmo que dissesse que não queria, teria de ir na mesma. Mas, surgiu um problema: os homens só podiam entrar nas soirés daquele teatro de elite vestidos de smoking.
O problema foi resolvido com a dita (e ridícula) peça de roupa, emprestada pelo meu primo e que, com um puxa daqui estica dali, serviu para o efeito. Acabou por me ser oferecida e, depois de melhor adaptada, viria a utilizá-la noutras récitas.
Entre os vários automóveis que o meu tio possuía, constava um Rolls-Royce. Por isso, não me espantou a respeitosa intervenção de uma das várias criadas, dizendo que um dos dois motoristas desejava saber qual o carro que nos levaria ao S. Carlos.   
Simples como era, o meu tio respondeu que seria o Peugeot, logo interrompido pelo meu primo que exclamou: “Oh, pai! Para o S. Carlos tem de ir o Rolls-Royce!"  
E lá fomos.
Chegados ao largo, o automóvel, com o seu emblema alado abrindo caminho por entre outros carros de luxo que já lá se encontravam, parou debaixo da arcada. Como era regra, o motorista, de boné na mão, abriu-nos as portas e saímos do carro. Depois, foi procurar um lugar para estacionar, enquanto o desfile automobilístico prosseguia sob aquela mítica arcada.
Assim que entrei no foyer daquele teatro que só conhecia por fora, e tentando acomodar-me o melhor possível dentro da “armadura” a que me tinham sujeito, comecei a admirar todo aquele luxo.
Depois de entrar e admirar a sala de espectáculos, e de reparar nos sumptuosos casacos de peles das senhoras e na 'fardamenta' rigorosamente igual dos cavalheiros, tal como a minha, sentei-me no meu lugar. 
Foi, então, que o meu olfacto detectou um estranho cheiro. Farejando, disfarçadamente, o ar, consegui identificá-lo: tratava-se de naftalina! É claro que, nessa altura, não percebi a relação com as indumentárias presentes. Até porque no que estava mais interessado, era assistir ao primeiro espectáculo de ópera da minha vida.
Tratava-se do Werther de Massenet, compositor que só conhecia de nome, e cujo enredo ignorava completamente.
Quando a representação terminou, a minha tia disse-me que não tinha gostado muito porque a “música não entrava no ouvido”!
Contrapus dizendo que, pelo contrário, fora o que mais tinha gostado. Depois, pensei cá para mim: a partir de agora sei que vou passar a assistir de borla a muitas óperas. 
Causas? Eram fáceis de determinar: ou faziam doer o rabo ou não entravam no ouvido. E assim aconteceu.

    Notas:
*Paneleiro: fabricante de panelas; armário onde se guardam panelas. Por tabuísmo, homossexual, gay. (in Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.)

**Para os que gostam de História, aqui vai a nota transcrita conforme o original:

Lisboa, 15 de Novembro de 1946.

Ex.mo Senhor Ricardo Covões, Coliseu dos Recreios-Lisboa.

      Para conhecimento de V.Exª comunico que, por despacho de Sua Excelência o Presidente do Conselho, de 12 do corrente,

     “Não é permitida a realização de espectáculos de ópera no Coliseu dos Recreios no período de 1 de Março a 30 de Abril de 1947, para não haver sobreposição de espectáculos de ópera e ser dada a preferência ao Teatro de S. Carlos.

A Bem da Nação
                                                                 O Inspector-Chefe
                                                               a) Óscar de Freitas.

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