24/08/2013

O FEÉRICO MUNDO DOS “POPóS”

Prosa satírico/realista escrita depois de mais uma leitura dos poemas ‘Manucure’ e ‘Apoteose’ de Mário de Sá-Carneiro. Peço desculpa à sua memória e a todos os admiradores do grande Poeta, por algum eventual plágio.

Nunca senti o chamado prazer da condução. Para mim trata-se de um autêntico frete, que reconheço tratar-se de uma excepção. Mas, como útil que é, também tenho automóvel, embora o considere meu escravo e não o inverso. Tanto se me dá que esteja à chuva como ao sol. Quero-o simplesmente obediente e que não me atazane a vida com avarias.
Porém, o meu gosto pela mecânica levou-me, muito cedo, a conhecer o funcionamento dessas máquinas. Mas, foi no norte de Angola, quando cumpria o chamado serviço militar obrigatório que, utilizando a teoria, conduzi por curiosidade um camião e comecei a fazer alguns “passeios” de jipe até às fazendas vizinhas pelas picadas existentes naquelas inóspitas paragens. Como é óbvio não havia polícia de trânsito (os polícias éramos nós) e o comandante da companhia, um capitão miliciano que declarava, corajosamente que “se estava nas tintas para a puta da guerra”, tal como todos nós, não se incomodava com os meus talentos automobilísticos sem carta de condução. O que era preciso era esperar que os dias passassem depressa, para mandar a África, Angola e a guerra para longe das nossas 'cacimbadas' cabeças.

Foi só depois do regresso à “Metrópole”, como o Governo e os seus lacaios militares da época “aconselhavam” que se designasse Portugal continental, que o meu pai quase me obrigou a tirar a carta de condução. Foi em Janeiro de 1969. A experiência adquirida com o camião e o jipe, permitiram-me tirar a carta em dez lições e fazer exame num “carocha” de três velocidades. Aliás, o examinador não me deixou passar da segunda e, após duas voltas a esse monumento à crueldade que é a praça de touros do Campo Pequeno, fiquei aprovado. E lá veio a prenda: um ‘Hilmann Himp’ oferecido pelo meu pai que, passado o primeiro entusiasmo, passou a ficar à porta de casa enquanto ia e vinha de transporte público para a Emissora Nacional para a qual tinha entrado meses antes.

Hoje, passados quase quarenta e cinco anos, e quando conduzo apenas o necessário graças à situação de reformado, sinto-me como um operário (agora diz-se trabalhador) numa linha de montagem. Em vez de enfiar parafusos em porcas, numa sucessão de cópulas intermináveis, acelero, travo, piso a embraiagem enquanto meto mudanças e olho para os rotineiros semáforos nas suas vetustas cores, na sua ordem sempre igual por causa dos daltónicos, embora haja quem não seja do Sporting ou do Benfica, e continua em frente, pensando que os que ficaram para trás não passam de uns pobre idiotas cumpridores do código da estrada.

E continuo guiando, desejoso de chegar ao destino e descansar do frete, como aquele que se faz à velhota do lado que, com todo o direito, precisa de assistência social, e julga ter ainda um corpo atraente graças a uma dúzia de operações plásticas que realizou, e lhe permitem ter as mamas plastificadas e a pele repuxada em todos os sítios devido à arte que os cirurgiões plásticos possuem, em alguns aspectos parecida com a dos fabricantes de enchidos. É claro que isto é só para as velhas ricas, como uma tal 'Lili das Canecas', que gostam de exibir os remendos nas revistas dedicadas a esse tipo de gente e a outras falsas celebridades. 

Entretanto, os meus olhos rodopiam olhando o exótico mundo que me rodeia. Reparo num já raro condutor de chapéu, e recordo o conselho do meu pai, depois repetido pelo instrutor das dez lições: "cuidado com os condutores de chapéu; e, quanto aos de boné, fuja deles".
Esquecendo esses já raros espécimes, até porque “é dos carecas de que elas gostam mais”, presto atenção ao carro da frente, normalmente conduzido por uma mulher (perdoem-me este antiquado machismo), que trava por tudo e por nada, ou desce uma rampa sempre com o pé no travão. Talvez seja accionista dos fabricantes de pastilhas de travagem ou ignore, o que é mais provável apesar das múltiplas lições a que hoje os condutores são sujeitos, a função inversa das caixas de velocidades. Seja como for, consegue dar cabo dos nervos de quem vai atrás, que não sabe se travou por emergência ou porque tem um tique nervoso na perna direita, que produz um bailado descompassado no respectivo pé.
Mais à frente, uma fumarada negra invade os meus pulmões e reduz o horizonte que os meus olhos ávidos de espaço procuram. São os restos de um automóvel, outrora o encanto do primeiro dono, que ainda consegue andar poluindo tudo e todos, embora aprovado na inspecção e passando nas barbas da Polícia de Trânsito que finge ignorar a poluição, como ignora, aliás, o barulho dos escapes propositadamente rotos, a que se junta a barulheira da maioria dos motoqueiros. Alguns desses condutores, não satisfeitos com o ruído produzido pela cloaca do motor, ainda acrescentam um infernal “pum-tchim-pum”ou “pum-pum-pum” continuamente repetidos, para afirmar a sua “personalidade” e mostrar que “gosta” de música. É o inato exibicionismo humano. 
E lá vai ele, ultrapassando tudo e todos em manobras arriscadas, contente de ter nascido apenas para possuir a máquina dos seus sonhos e mostrar, pelo menos nesse campo, que é um génio. 

Mas não é só nos carros velhos que se revela esta faceta da mentalidade humana. Naqueles, normalmente vai um pobre diabo cuja única ambição na vida foi ter um automóvel com uma ruidosa aparelhagem e não arranjou dinheiro para mais. Nas carripanas novas topo de gama, muitas vezes adquiridas a crédito por pessoas pouco endinheiradas ou a pronto pagamento pelos novos-ricos que, à custa da política, burlas e corrupção, abundam em Portugal, o que interessa é exibi-las aos vizinhos com vetustas cores ou, o que é melhor, passear ante os basbaques num descapotável com 'frente agressiva' e, de preferência, com uma 'boazona' ao lado. Depois é estacionar a maravilha em frente de uma esplanada, logo a seguir a um sinal de paragem proibida e, enquanto bebe um copo, olhar embevecido para o “popó”, tentando chamar a atenção para o facto de que aquela coisa é dele.

Mas existem também os grandes usuários do vernáculo vicentino. Tudo é motivo para qualquer género de insultos, seja por causa de uma buzinadela ou por um sinal de luzes. Esses são os campeões dos complexos de inferioridade, a que alguns juntam as tradicionais “caralhadas” aliadas à classificação da mãe do outro como trabalhadora da mais velha profissão do mundo. Mais adiante um carro pára e desafia o condutor como um forcado (essa disparatada herança marialva) faz a um touro. E, das duas uma: ou o “touro” é mais forte, quanto mais não seja pelo volume físico, porque os cornos não se vêm, e o primeiro foge, ou dá-se a situação inversa e assistimos a uma cena das simpáticas e cordiais relações humanas. 
Chego, então, a um cruzamento onde, por vezes entre uma multiplicidade de sinais que quase nos faz parar para destrinçar uns dos outros, há um que informa que não tenho prioridade. Porém, da esquerda surge um cidadão cumpridor que, não tendo uma sinalização contrária, provoca a conhecida dança de “ó passas tu ou passo eu”. Isto no caso de ser educado. O mesmo se passa com o sinal “stop”, o mais disparatado sinal de trânsito que existe. “Mesmo no deserto stop é para parar”, mostrava um antigo anúncio. Mas, parar para quê quando, na maior parte das vezes, a visibilidade para os dois lados é total? Qual é a diferença entre o “stop” e o sinal que indica perda de prioridade e quem é que decide entre um e outro? O mais divertido é que é considerado uma infracção muito grave que quase ninguém respeita, incluindo eu. Nem a própria Polícia, posso testemunhar.

Mais adiante chego a um entroncamento e, devido ao respectivo sinal de perda de prioridade, espero que um carro que vem da esquerda passe. Mas ele é conduzido por um egoísta que vira à direita sem fazer o respectivo sinal, o que me permitiria não ficar à espera que sua excelência passasse. 'São feitios', como dizia Raul Solnado. Falta de educação e de civismo, digo eu.
A seguir deparo com outro um cruzamento sem qualquer sinalização, e começa outro tipo de bailado por causa de outro absurdo: a prioridade à direita, patetice existente em Portugal como em quase todos os países, em que a condução se faz pela direita. Senão, analisemos apenas os factos: conduzimos do lado mais afastado da viatura e podemos ter um passageiro ao nosso lado a tirar-nos a visibilidade, e quando surge um carro da direita, este apresenta-se com um ângulo mais pequeno do que os que vêem da esquerda, com a consequente diminuição do ângulo de visão e do tempo de reacção. E ainda outras conclusões lógicas que não vou citar aqui, mas que qualquer simples análise das várias situações consegue demonstrar. Curiosamente, nos países onde se conduz pela esquerda (caso dos ingleses que estão sempre ao contrário do resto do mundo) a prioridade é também da direita. Desta vez até estão certos.

Mas toda esta bizarria desaparece da minha cabeça, quando um festival de luzes desperta os meus olhos, já fatigados de tanta beleza mas cautelosos. É a emoção completa que me faz esquecer o cansaço e o aborrecimento, ao ver os novos popós com desenhos luminosos dos mais diversos feitios, apregoando aos outros condutores criancices do género “o meu é mais bonito que o teu”, ou “o meu parece uma árvore de Natal enquanto o teu se assemelha às estátuas cobertas de crepes na chamada Semana Santa". Ó feéricas luzes que excitam, que embriagam, que resplandecem, rodopiam e começam a faiscar nos meus óculos de lentes progressivas. Como as minhas retinas ficam impressionadas e enviam as suas espectaculares mensagens para os meus neurónios ávidos de beleza.

Mas, agora já é noite e começo a pensar em pôr óculos escuros para não ficar encandeado com os modernos faróis de luz branca azulada que dificultam a admiração provocada pelas traseiras radiantes de luzes vermelhas com os mais diversos desenhos, tornando mais eróticos os rabinhos alçados dos automóveis actuais. E aquela placa horizontal, que mais parece um porta-malas apropriado para transportar os grandes baús que as antigas criadas de servir traziam da província para a capital. Chamam-lhe “ailerons”, como se fossem muito funcionais a velocidades que não podem exceder os 120 quilómetros por hora. Mas imitam os carros da fórmula-1, e isso é que importa. Mas nesses, as tais placas são grandes e móveis, como nos aviões, o que justifica a sua existência.
Mas, olhai senhores, e vejam aqueles conduzem pelo meio da auto-estrada de três faixas, o que até está certo. Nas bermas existem placas que dizem: circule pela direita. Ora, como numa auto-estrada ninguém pode andar em círculos, cada qual pode utilizar a faixa que mais gosta. Por isso, ultrapassa-se pela esquerda ou pela direita, já que eles não saem da faixa central, por mais sinais que lhes façam.
Tudo isto acaba por se tornar num turbilhão onde a fronteira entre normal e psicopata se desmorona. Chego a pensar que sou um pobre idiota por não partilhar tão feérico mundo. Breve começo a falar sozinho, aumentando gradualmente a intensidade da voz: "Ei lá! Olha para aquele carro". É velho mas exibe o tal porta-malas acrescentado e bem levantado que lhe dá, julga ele, toda a segurança necessária para desafiar tudo e todos. "Oh! Cuidado!" Um pouco adiante segue um descapotável com o condutor de óculos escuros afirmando a sua personalidade, aumentada pelo bailado aerodinâmico dos cabelos ao vento da mulher ou da amante que vai a seu lado. Não é preciso ter cabeça. O que é preciso é ter automóvel e afirmá-lo perante a sociedade. 
Mais longe aparece um carro vermelho, outro amarelo gema de ovo, ou ainda um de cor verde de alface cediça. E, também um grande carro de luxo, possivelmente pertencente a um político qualquer, enriquecido pela corrupção e compadrio, ou a um honrado cidadão, coisa que, afinal, ainda existe. Adiante, a pouca distância de um sinal vermelho, um paranóico da velocidade acelera a fundo para logo travar perante o semáforo já pouco antes avistado. Agita-se, enervado, à espera do sinal verde para ser ele o primeiro a arrancar. Deixa traços de pneus queimados no asfalto, mas queixa-se do preço da gasolina, dizendo que é impossível viver assim. Até está certo. Tenta compensar as suas frustrações pela libertação de uma energia cujo preço é superior aos rendimentos que consegue auferir. Que interessa a família? O importante é exibir o automóvel e libertar através dele as energias, as frustrações e os complexos do dia-a-dia. Já que não consegue que lhe ponham umas dúzias de virgens à disposição, usa o pé como substituto.

 Ai! O tipo acabou de bater na erótica traseira do que ia à frente. Pás, catrapás, crac, croc! E começa a trágico-comédia do costume. Mas, que importa? O outro é que é sempre o culpado e a companhia de seguros é que deve resolver o assunto porque, como dizia aquele antigo anúncio (depois proibido): “E agora? Bate-chapas e tintas Robbia…crac”! 
Mas, se entretanto chega a Polícia, a cena torna-se mais demorada, embora plena de beleza. Depois de lerem e relerem as papeladas, palavreado cruzado e perguntas inúteis, os agentes curvam-se para medir, com vetustas fitas métricas, as posições em que ficaram os 'popós'. É o momento solene em que exibem toda a épica majestade dos seus traseiros, em posições iguais às dos Alemães quando perderam a guerra.  

Não tem fim a maravilha!!!

Quase em pânico chego ao destino e tento esquecer e libertar-me daquele mundo louco. Deixo a carripana no primeiro local que encontro, ao sol ou à chuva, sem voltar a olhar para ela, tique que a maioria dos homens tem. 
Ah! Finalmente estou na paz da minha casa, e procuro esquecer todo o apocalipse que me rodeou. Mas não! De súbito, os vidros das janelas vibram por causa de um “pum-tchi-pum” que vem da rua, enquanto os anúncios na televisão apresentam as novas maravilhas no que respeita a popós. Venha ver o novo “cadilata” agora com novo motor que debita muitos cavalos e éguas, de milhares de centímetros cúbicos de cilindrada, computador de bordo, ar condicionado, espremedor de frutas, fornecimento automático de preservativos, pensos higiénicos, sanita para casos urgentes com limpa-ânus e piaçaba eléctricos, máquina de barbear, depilador, vibradores de vários tamanhos e sabores etc. etc... E que até anda, consumindo apenas “n” vírgula nove litros aos cem. Além disto temos ainda alguns extras interessantes que, por uma módica quantia, podem ser adicionados como, por exemplo, um pneu sobresselente para o caso de ter um furo. Visite o nosso concessionário onde poderá adquirir o novo”cadilata” para embasbacar os vizinhos, apenas por noventa e nove mil, novecentos e noventa e nove euros e noventa e nove cêntimos, ou em suaves prestações de uns míseros noves vírgula noventa e nove por mês.
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Depois de umas cervejinhas, deito-me e adormeço após um maior ou menor tempo de leitura. Mas, e talvez por culpa da cerveja, tenho um pesadelo:
Luzes às cores em desenhos feéricos e garridos, rabos alçados, porta-malas vistosos ridiculamente aumentados pelos chamados tunings, cabelos ao vento loiros, pretos, ruivos, azuis e mais cores das tinturarias, carecas luzidias, pum-tchi-puns que nos dão murros no estômago, motoqueiros ruidosos e soberanos da estrada, fumos pretos, cinzentos, brancos perfumando o ar com os odores dos combustíveis....

- Acordo, mas volto a dormir, desta vez acompanhado por um pesadelo pior: 
e a carente vizinha do lado aparece-me com ar sarcástico ameaçando-me com uma espécie de moca, enquanto berra: “O que é que você, tão velho quanto eu, quer? Olhe, sua espécie de castiçal murcho. Comprei isto!”.  E mostra-me um VIBRADOR!!!
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“Ao ver escoar-se a vida humanamente,
Em suas águas certas eu hesito,
E detenho-me na torrente
Das coisas geniais em que medito”

‘Mário de Sá-Carneiro’

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