15/01/2014

CARTA A EUSÉBIO

Meu caro Eusébio.

Se o Além existe, o que muito duvido, talvez leias esta carta. Nasceste no mesmo ano que eu, em plena Segunda Guerra Mundial. Tu na então Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique, e eu em Lisboa, na época a Capital do Império.
Tiveste uma origem muito modesta. O mesmo não posso dizer, porque a minha família pertencia à classe média-alta.
Muito antes de pensares vir para a Metrópole (se é que sabias o que isso era) eu ia com o meu pai ver alguns jogos do Sporting, clube de que sou apenas simpatizante. À parte isto, o futebol pouco me interessa.
Nessa época tão distante, e para afirmar a portugalidade dessas terras hoje tão desgraçadas, o Estado Novo tinha feito vir para Lisboa algumas promessas do futebol nacional, onde se destacaram os irmãos teus conterrâneos Matateu e Vicente, ambos no Belenenses.
Quando chegaste à capital, foste “caçado” pelo Benfica que se adiantou ao Sporting na contratação. Poderias, assim, ter sido sportinguista, mas o mundo é de quem chega primeiro.
Só te vi jogar na televisão, e não posso esquecer os dois jogos em que o Benfica se sagrou campeão europeu, transmitidos em directo, novidade na época.

Depois, veio o “Mundial de 66”. Eu estava em Luanda, onde não havia televisão, mas ouvíamos todos os relatos da selecção, cujas vitórias punham todos, brancos e pretos, em autêntica loucura. E posso afirmar que eram manifestações verdadeiramente espontâneas. 
Não vou falar do Portugal-Coreia (toda a gente sabe a história) mas de uma situação caricata que se passou no jogo com a Inglaterra. Jantava em casa de um amigo enquanto, pela rádio, ouvíamos ansiosos o relato feito por Artur Agostinho. A certa altura, quando perdíamos por 2-1, pareceu-nos ouvir “Eusébio remata e gooolo!” Com o entusiasmo levantámo-nos e a mesa, que era de tripé, virou-se deitando tudo para o chão. O meu amigo escorregou e parece-me que ainda o estou a ver no chão a exclamar: “se, ao menos tivesse sido golo!...”

E quatro décadas passaram. Um acaso fez com que te visse no aeroporto de Munique, aquando do “Mundial de 2006”. Estavas sentado, encolhido é mais o termo, numa cadeira. Algumas pessoas cumprimentavam-te e outras, tal como eu, apenas olhavam. Já íamos muito alto quando, olhando para trás, reparei que ias no mesmo avião.
Disse para a minha mulher: “o Eusébio está sentado mais atrás; até parece que ninguém dá por ele”. E, como poderia dar se a tua imagem, como sempre, irradiava, nobremente, a contumaz singeleza?

Agora morreste! De repente, todo o Portugal se levantou, chorou, recordou (embora muito mais de metade dos portugueses não ser ainda nascida ou era criança no tempo da tua glória) e até te querem colocar no Panteão! Se soubesses disto penso que ficarias horrorizado, já que a tua verdadeira modéstia compreenderia que há valores muito mais altos do que o futebol.
Sem querer meter-me na vida alheia e pedindo desculpa por abordar este assunto, julgo que também ficarias admirado com a “pensão” que o Benfica atribuiu à tua mulher. A maior parte dos portugueses trabalhou quarenta anos ou mais, e recebe menos de um décimo dessa quantia! Votado ao ostracismo quando a tua glória se eclipsou, foi o Benfica que te deu, merecidamente, a mão, agora tornada hereditária.
Claro que ela não tem culpa, até porque é humanamente agradável viver à custa da glória dos outros.

Para terminar, e porque sei que isto te faria rir, acho oportuno dizer que os ilustres deputados que fazem as leis deste país deviam propor a substituição da esfera armilar da nossa Bandeira por uma bola de futebol. Por sua vez, os castelos iriam sendo substituídos, à medida que Eusébios e Ronaldos fossem desaparecendo, pelos seus retratos.
Será talvez o provável futuro desta ditosa Pátria, há várias décadas governada por ladrões, corruptos e oportunistas. Salvam-se uns poucos que, por não quererem fazer parte das quadrilhas, ou com medo da ‘censura’ da chamada Democracia, estão calados e quietos.

Um grande abraço, do planeta Terra para o Além.



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