Continuando no mesmo tema, vou contar algumas broncas
que, na conceituadíssima Emissora Nacional (a “maçadora nacional” como era
designada pelo bom-humor lusitano tão amante de trocadilhos), tive conhecimento
pessoal ou foram contadas por colegas mais antigos.
Nesse longínquo ano de 1968, quando entrei para aquela
estação de rádio como assistente de programas musicais (não vou referir outra
vez os pormenores da minha carreira naquela casa), puseram-me na “onda curta” a
responder às cartas dos nossos desgraçados imigrantes, rudes e analfabetos, que
tinham partido para França onde habitavam nos bidonvilles. (Hoje não são os analfabetos mas os cérebros que
imigram, por sugestão de um coelho que vai marcando os seus passos nos destinos
do nosso ditoso País).
Um pouco frustrado com aquele trabalho, para o qual não
tinha concorrido mas, naquele tempo começava-se pela base, atendia tentando
compreender o “português” rabiscado nas cartas que eram colocadas pelo chefe na
minha secretária, os pedidos de transmissão das música que mais gostavam de ouvir.
Como é fácil de adivinhar (e estou a fazer História) era o “Fado do Emigrante”,
cantado por Deolinda Rodrigues, o mais solicitado. Mas, havia também o
“conjunto de Maria Albertina” com os seus êxitos semi-folclóricos mas muito
populares e um tal Teixeirinha, músico popular brasileiro que fazia as delícias
dos nossos quase escravizados compatriotas em terras da França e da Alemanha.
Mas, politicamente falando, eram as suas remessas de dinheiro que contribuíam
para que o escudo fosse uma das moedas mais fortes de todo o mundo.
Quis o acaso que Salazar fosse atingido por um
acidente vascular cerebral (a versão oficial dizia que tinha caído de uma
cadeira), cerca de um mês depois de eu ter entrado para a Emissora Nacional. Este
acontecimento provocou um reforço da censura, já que qualquer tipo de alusão ao
facto, tinha de passar por uma mais meticulosa inspecção dos censores.
Por isso foi publicada uma ordem interna que obrigava
os assistentes musicais a ouvirem todos os discos com música vocal, antes da
elaboração final do programa. Em caso de dúvida, era necessário o parecer do
chefe do serviço, o qual, por sua vez, atirava a “batata quente” para o chefe da
respectiva divisão.
Receoso, e sabendo que as culpas caem sempre sobre
quem está mais abaixo (tinha aprendido isso na tropa), qualquer palavra ou
frase que pudessem prestar-se a trocadilhos, apontava numa folha de papel para
submeter à autorização superior que, depois de assinada, me livrava da
responsabilidade da transmissão.
Hoje, passados tantos anos, recordo duas que me
fizeram rir e que, obviamente, não valia a pena submeter ao exame censório. Não
sei se pertenciam a fados, cançonetas ou a “baladas”, fenómeno este que começava
a entrar nos meios juvenis contestantes do regime, e que atingiriam o apogeu no
programa “Zip-Zip-“ da RTP, já no tempo de Marcelo Caetano.
Uma delas dizia assim: “estive entre a vida e a morte”
e a outra, a “melhor” de todas, repisava “vai-te embora António”!
É claro que perante isto, era muito difícil encontrar
qualquer letra que o nosso sempre bem disposto povo, mesmo longe da sua terra,
não encontrasse qualquer semelhança com a situação de “suspense” que se vivia.
Por isso, ficou decidido arranjar as coisas de modo a dar preferência à música
instrumental, até que a “crise” abrandasse.
Voltando ao tema principal, e como isto já vai longo,
como é meu hábito quando começo a escrever, vou relatar apenas alguns
disparates e situações caricatas que ocorreram naquela “casa de doidos”, como
era conhecida por quem lá trabalhava.
Com a mania que os Portugueses sempre tiveram de
pronunciar os nomes e outras palavras estrangeiras, tentando melhor ou pior,
aproximar-se o mais possível da fonética original, quebrando a musicalidade da
nossa língua, era frequente ouvir coisas de pasmar; aliás hoje, devido à
multiplicidade de estações de rádio e TV, a epidemia tornou-se, dramaticamente,
mais virulenta. Ainda há poucos dias ouvi pronunciar o nome da cidade australiana
Perth com um sotaque tal, que só depois de perceber que o assunto se referia
àquele continente, é que consegui identificá-la como “Perte”. Foi assim que
aprendi e que, a meu ver, deve ser pronunciada para as pessoas entenderem. Ou,
qualquer dia vamos, também, ouvir London em vez de Londres?
Ora naquele tempo, em que a moda do francês dava lugar
ao inglês, agora na berra mas indiferente para os franceses (e não só) que
pronunciam Beethoven, Schubert ou Wagner acentuando a última sílaba, como
podemos ouvir no canal “Mezzo” (pronunciam mèzô), Mozart era uma das “vítimas”
preferidas. Mais valia pronunciar o seu nome à portuguesa que sempre soava mais
parecido com o alemão. Mas, isso era revelar uma saloiice imprópria de quem
sabe todas as línguas, mesmo que saia asneira; assim, os locutores diziam
“môzart” acentuando a primeira sílaba. Mas chegaram a acontecer coisas muito
mais espectaculares, como aconteceu com Bizet e Wagner, que foram anunciados
como “baizit” e “uogner”!
Casos como este continuam a acontecer nos órgãos de comunicação
social, em que topónimos não ingleses são pronunciados como se o fossem; já me
referi num artigo anterior a casos como seja a cidade Russa de Irkutsk (grafia latina aproximada do
cirílico) ter sido pronunciada como “àrkàtsk” e a ninfa 'Io' ter sido chamada de
“aiâu”! Também referi que o meu saudoso e querido pai pediu em Espanha uma
“escueva” quando, afinal, é escova como em português, apenas com uma pequena
diferença de sotaque.
Quanto aos disparates de português, recordo uma colega
jornalista, profissão que inventa, deturpa e exagera na ânsia de espantar e
chegar primeiro com a notícia (é óbvio que, como em tudo há excepções) que,
referindo-se a uma cantora lírica disse, ao microfone, que ela já desde nova
“traulitava” canções! É claro que isto já foi muitos anos depois do 25 de Abril.
Estou a ser muito mauzinho, não é verdade? Mas eu
também cometi alguns erros nas centenas de programas que escrevi e procurei
aceitar sempre com agrado os reparos e ensinamentos que me fizeram. Errare humanum est, mas a dificuldade em
admitir pessoalmente esta máxima, é característica da maioria das pessoas.
Principalmente entre colegas de trabalho, onde a inveja, o compadrio e a
hipocrisia são rainhas.
E vou terminar com duas pequenas histórias que, se fizessem
parte de uma obra teatral, dificilmente teriam acontecido com tanta
naturalidade.
A primeira aconteceu comigo. Fui encarregado de fazer
a gravação de um concerto dado por um grupo coral feminino, dirigido por um
maestro alemão bastante idoso e há muito radicado em Portugal.
Quando entrei na sala onde estava a ensaiar, o coro
cantava uma composição inglesa da Renascença que, a certa altura repetia as palavras
“fud it”. Não sei se é assim que se escreve (nunca soube o inglês moderno,
quanto mais o antigo), mas era assim que soava. E, foi no preciso momento em que entrei que todas aquelas
senhoras, cuja maior parte conhecia, repetiam aquelas palavras.
A minha entrada provocou, como é óbvio, que todos os
olhares se dirigissem para mim. Como nunca tinha ouvido tanta mulher a dizer
semelhante coisa para mim, é claro que comecei a rir, facto que se estendeu a
todas elas.
Sem perceber a razão daquela hilaridade porque se
encontrava de costas, o maestro parou de dirigir e, no seu português com
sotaque alemão, disse não “perrceberr” onde estava a “grraça”, ao que uma das
cantores respondeu: "é natural, na sua idade já não consegue ver”!
Uma sonora gargalhada geral seguiu-se a esta resposta
mas, como bom alemão que era, o maestro repôs a ordem e o ensaio prosseguiu.
A outra história passou-se alguns anos antes da minha
entrada na Emissora Nacional. Foi-me contada e confirmada pelos colegas mais
antigos e é do tempo dos discos de 78 rotações.
Estava em moda uma canção chamada “Caminho Errado”,
cantada por Luís Piçarra, cuja voz ainda hoje se pode ouvir com frequência
cantando o Hino do Benfica.
A letra da canção diz, a certa altura, “eu não sou
quem tu procuras”…”nossas vidas vão atrás de uma ilusão, caminho errado”.
Acontecia, e não eram poucas as vezes, que os discos
sendo manuseados por vários funcionários, muitos deles desleixados, estavam de
tal modo riscados que a agulha do gira-discos ficava presa numa espiral. A solução
era um pequeno empurrão para continuar a leitura.
Mas o Diabo (para os crentes) também tem sentido de
humor e, daquela vez, “ordenou” que a agulha ficasse presa na palavra "procuras",
ficando a repetir “procu, procu, procu...” perante a aflição do locutor.
Mas o Diabo continuava atento e, depois do piparote no
braço do gira-discos, a agulha acertou em cheio na espira onde estavam gravadas
as palavras “caminho errado...”.
- “E esta, heim?" - Como dizia Fernando Pessa.
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