04/09/2014

PEQUENA ANTOLOGIA DE DISPARATES SOBRE MÚSICA (2ª Parte)

Continuando no mesmo tema, vou contar algumas broncas que, na conceituadíssima Emissora Nacional (a “maçadora nacional” como era designada pelo bom-humor lusitano tão amante de trocadilhos), tive conhecimento pessoal ou foram contadas por colegas mais antigos.
Nesse longínquo ano de 1968, quando entrei para aquela estação de rádio como assistente de programas musicais (não vou referir outra vez os pormenores da minha carreira naquela casa), puseram-me na “onda curta” a responder às cartas dos nossos desgraçados imigrantes, rudes e analfabetos, que tinham partido para França onde habitavam nos bidonvilles. (Hoje não são os analfabetos mas os cérebros que imigram, por sugestão de um coelho que vai marcando os seus passos nos destinos do nosso ditoso País).
Um pouco frustrado com aquele trabalho, para o qual não tinha concorrido mas, naquele tempo começava-se pela base, atendia tentando compreender o “português” rabiscado nas cartas que eram colocadas pelo chefe na minha secretária, os pedidos de transmissão das música que mais gostavam de ouvir. Como é fácil de adivinhar (e estou a fazer História) era o “Fado do Emigrante”, cantado por Deolinda Rodrigues, o mais solicitado. Mas, havia também o “conjunto de Maria Albertina” com os seus êxitos semi-folclóricos mas muito populares e um tal Teixeirinha, músico popular brasileiro que fazia as delícias dos nossos quase escravizados compatriotas em terras da França e da Alemanha. 

Mas, politicamente falando, eram as suas remessas de dinheiro que contribuíam para que o escudo fosse uma das moedas mais fortes de todo o mundo.
Quis o acaso que Salazar fosse atingido por um acidente vascular cerebral (a versão oficial dizia que tinha caído de uma cadeira), cerca de um mês depois de eu ter entrado para a Emissora Nacional. Este acontecimento provocou um reforço da censura, já que qualquer tipo de alusão ao facto, tinha de passar por uma mais meticulosa inspecção dos censores.
Por isso foi publicada uma ordem interna que obrigava os assistentes musicais a ouvirem todos os discos com música vocal, antes da elaboração final do programa. Em caso de dúvida, era necessário o parecer do chefe do serviço, o qual, por sua vez, atirava a “batata quente” para o chefe da respectiva divisão.
Receoso, e sabendo que as culpas caem sempre sobre quem está mais abaixo (tinha aprendido isso na tropa), qualquer palavra ou frase que pudessem prestar-se a trocadilhos, apontava numa folha de papel para submeter à autorização superior que, depois de assinada, me livrava da responsabilidade da transmissão.
Hoje, passados tantos anos, recordo duas que me fizeram rir e que, obviamente, não valia a pena submeter ao exame censório. Não sei se pertenciam a fados, cançonetas ou a “baladas”, fenómeno este que começava a entrar nos meios juvenis contestantes do regime, e que atingiriam o apogeu no programa “Zip-Zip-“ da RTP, já no tempo de Marcelo Caetano.
Uma delas dizia assim: “estive entre a vida e a morte” e a outra, a “melhor” de todas, repisava “vai-te embora António”!
É claro que perante isto, era muito difícil encontrar qualquer letra que o nosso sempre bem disposto povo, mesmo longe da sua terra, não encontrasse qualquer semelhança com a situação de “suspense” que se vivia. Por isso, ficou decidido arranjar as coisas de modo a dar preferência à música instrumental, até que a “crise” abrandasse.

Voltando ao tema principal, e como isto já vai longo, como é meu hábito quando começo a escrever, vou relatar apenas alguns disparates e situações caricatas que ocorreram naquela “casa de doidos”, como era conhecida por quem lá trabalhava.
Com a mania que os Portugueses sempre tiveram de pronunciar os nomes e outras palavras estrangeiras, tentando melhor ou pior, aproximar-se o mais possível da fonética original, quebrando a musicalidade da nossa língua, era frequente ouvir coisas de pasmar; aliás hoje, devido à multiplicidade de estações de rádio e TV, a epidemia tornou-se, dramaticamente, mais virulenta. Ainda há poucos dias ouvi pronunciar o nome da cidade australiana Perth com um sotaque tal, que só depois de perceber que o assunto se referia àquele continente, é que consegui identificá-la como “Perte”. Foi assim que aprendi e que, a meu ver, deve ser pronunciada para as pessoas entenderem. Ou, qualquer dia vamos, também, ouvir London em vez de Londres?
Ora naquele tempo, em que a moda do francês dava lugar ao inglês, agora na berra mas indiferente para os franceses (e não só) que pronunciam Beethoven, Schubert ou Wagner acentuando a última sílaba, como podemos ouvir no canal “Mezzo” (pronunciam mèzô), Mozart era uma das “vítimas” preferidas. Mais valia pronunciar o seu nome à portuguesa que sempre soava mais parecido com o alemão. Mas, isso era revelar uma saloiice imprópria de quem sabe todas as línguas, mesmo que saia asneira; assim, os locutores diziam “môzart” acentuando a primeira sílaba. Mas chegaram a acontecer coisas muito mais espectaculares, como aconteceu com Bizet e Wagner, que foram anunciados como “baizit” e “uogner”!
Casos como este continuam a acontecer nos órgãos de comunicação social, em que topónimos não ingleses são pronunciados como se o fossem; já me referi num artigo anterior a casos como seja a cidade Russa de Irkutsk (grafia latina aproximada do cirílico) ter sido pronunciada como “àrkàtsk” e a ninfa 'Io' ter sido chamada de “aiâu! Também referi que o meu saudoso e querido pai pediu em Espanha uma “escueva” quando, afinal, é escova como em português, apenas com uma pequena diferença de sotaque.  

Quanto aos disparates de português, recordo uma colega jornalista, profissão que inventa, deturpa e exagera na ânsia de espantar e chegar primeiro com a notícia (é óbvio que, como em tudo há excepções) que, referindo-se a uma cantora lírica disse, ao microfone, que ela já desde nova “traulitava” canções! É claro que isto já foi muitos anos depois do 25 de Abril.
Estou a ser muito mauzinho, não é verdade? Mas eu também cometi alguns erros nas centenas de programas que escrevi e procurei aceitar sempre com agrado os reparos e ensinamentos que me fizeram. Errare humanum est, mas a dificuldade em admitir pessoalmente esta máxima, é característica da maioria das pessoas. Principalmente entre colegas de trabalho, onde a inveja, o compadrio e a hipocrisia são rainhas.

E vou terminar com duas pequenas histórias que, se fizessem parte de uma obra teatral, dificilmente teriam acontecido com tanta naturalidade.
A primeira aconteceu comigo. Fui encarregado de fazer a gravação de um concerto dado por um grupo coral feminino, dirigido por um maestro alemão bastante idoso e há muito radicado em Portugal.
Quando entrei na sala onde estava a ensaiar, o coro cantava uma composição inglesa da Renascença que, a certa altura repetia as palavras “fud it”. Não sei se é assim que se escreve (nunca soube o inglês moderno, quanto mais o antigo), mas era assim que soava. E, foi no preciso momento em que entrei que todas aquelas senhoras, cuja maior parte conhecia, repetiam aquelas palavras.
A minha entrada provocou, como é óbvio, que todos os olhares se dirigissem para mim. Como nunca tinha ouvido tanta mulher a dizer semelhante coisa para mim, é claro que comecei a rir, facto que se estendeu a todas elas.
Sem perceber a razão daquela hilaridade porque se encontrava de costas, o maestro parou de dirigir e, no seu português com sotaque alemão, disse não “perrceberr” onde estava a “grraça”, ao que uma das cantores respondeu: "é natural, na sua idade já não consegue ver”!
Uma sonora gargalhada geral seguiu-se a esta resposta mas, como bom alemão que era, o maestro repôs a ordem e o ensaio prosseguiu.
A outra história passou-se alguns anos antes da minha entrada na Emissora Nacional. Foi-me contada e confirmada pelos colegas mais antigos e é do tempo dos discos de 78 rotações.
Estava em moda uma canção chamada “Caminho Errado”, cantada por Luís Piçarra, cuja voz ainda hoje se pode ouvir com frequência cantando o Hino do Benfica.
A letra da canção diz, a certa altura, “eu não sou quem tu procuras”…”nossas vidas vão atrás de uma ilusão, caminho errado”.
Acontecia, e não eram poucas as vezes, que os discos sendo manuseados por vários funcionários, muitos deles desleixados, estavam de tal modo riscados que a agulha do gira-discos ficava presa numa espiral. A solução era um pequeno empurrão para continuar a leitura.
Mas o Diabo (para os crentes) também tem sentido de humor e, daquela vez, “ordenou” que a agulha ficasse presa na palavra "procuras", ficando a repetir “procu, procu, procu...” perante a aflição do locutor.
Mas o Diabo continuava atento e, depois do piparote no braço do gira-discos, a agulha acertou em cheio na espira onde estavam gravadas as palavras “caminho errado...”.
- “E esta, heim?" - Como dizia Fernando Pessa.

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